sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Fim de Tarde

Depois de anos-luz posto de novo. Dessa vez uma crônica que enviei ao Concurso de Crônicas da Feira de Literatura de São João Del-Rei, conseguindo o 4º lugar pelo Júri e o 1º através do Júri Popular pela internet.




Fim de tarde




Fim de tarde. Ao fundo, o badalar dos velhos sinos. Os mesmos seis toques de todas as tardes, que marcam a sua presença.
Lá vai ele, cabisbaixo, mãos no bolso do paletó surrado.  Se não fosse assim, tão triste e encabulado, talvez notasse aqueles olhos sedentos de sua forma tediosa, que há tanto tempo lhe acompanham.
A quem possa parecer, é um encontro marcado. Ele em sua doce solidão, com seu olhar vago e seu sorriso impreciso; e os olhos, aqueles olhos, brilhantes de querência, de tentação, sempre à mesma hora, no mesmo local.
Um andarilho mais atento se interessaria por saber o que há nesse par, tão simplório e envolvente. Em que há tanta destreza nessa fuga inconsciente e tão mais insistência nesse fazer-se notar? Eles se diferem em algo, mas não há um alguém mais interessado, nem tão pouco esforçado, em revelar tão singelas posições. Só há ele e seu caminhar matreiro, que transborda melancolia, uma dor lancinante. Em contraponto, tem aquele par de olhos, que sobrevivem ao pesar do desejo não revelado, não vivido.
Dia após dia, os dois se desencontram. Toque após toque dos sinos, os passos naquela viela, com a graça da antiguidade, são dados e trazem vida à casa de detalhes azuis, janelas brancas e aos olhos, aqueles olhos.
Eles não se cansam de ver, apenas ele passar e ir, não se sabe para onde, nem tão pouco interessa saber. A única coisa importante daquele momento, seis badaladas, é que ele vem, deixa o cheiro da sua solidão ao atravessar a rua. Há quanto tempo se observa essa tranquila dança de desencontro? Um mês, seis meses, dois anos?...
O tempo é impreciso, se arrasta com toda a dificuldade das seis badaladas que demoram tanto a serem ouvidas. Cada passagem inicia o martírio diário daqueles olhos profundos, sua emoção é a espera e nada mais. Há muito perdeu a esperança de que ele lhe notasse, buscou satisfazer-se com o que tinha: sua visão. E tentava dela, a cada novo encontro, tirar maior proveito. Os olhos eram como máquina fotográfica, podiam guardar e dizer cada característica dele. A manga puída do paletó, os sapatos mal engraxados, as camisas de cores sóbrias, o corte no rosto da barba feita às pressas. Tudo estava ali e a cada dia eram essas imagens que lhe invadiam a mente.
Naquela nova tarde, as mesmas badaladas, a mesma rua, a mesma janela, os mesmos olhos. Só ele não era o mesmo. Vinha com as mãos leves, soltas ao lado do corpo, a cabeça altiva. Observava, algo acontecera, não era mais alguém tomado pela desesperança. Era homem, como todos os outros.
As novidades parariam por aí? Subia a rua com leveza, parecendo querer compensar cada passo pesado de antes. Parecia sorrir, com a verdade de quem sabe o que quer. E a cada passo que dava e mais próximo da janela branca ficava, aqueles olhos se emocionavam, de novo. Não é necessário dizer, a que se parecia essa emoção, o acontecimento seguinte fala por si.
Ele virou-se. Olhou e encontrou aqueles velhos companheiros, brilhando de contentamento. Tudo parou, nada mais tinha significado. Apenas os dois, ele e seu admirador. Foi o instante em que os olhos se calaram e ele quis falar.
Papéis invertidos. Acabou. O relógio voltou a girar, os carros a passar. Mas algo havia mudado. Outra tarde, seis sons do sino, passos pesados, ombros caídos. Olhos na janela, à espreita. Ele passa. E os olhos sorriem.